A ARTE LITERÁRIA E A QUESTÃO MORAL
“O artista é a antena da raça.” Desde que ouvi pela primeira vez essa frase de Ezra Pound, poeta do século XX, fiquei impressionado. Ora, se o artista é antena da raça a obra é a declaração da mensagem recebida. No entanto, não sei explicar por que pensava essa inusitada antena como principalmente captadora. Hoje a entendo mais claramente como emissora. Nesse sentido, a obra de arte é a declaração da mensagem recebida e elaborada pelo artista. A questão central quanto a arte parece ser mesmo a questão da mensagem.
A definição do que seja uma obra de arte parece supor uma outra obra de arte em termos de conceituação. Em suas origens a arte nasceu relacionada a religião pagã. Nos poemas homéricos os deuses interagem com os humanos. O teatro grego nasceu atrelado a um festival em homenagem a uma divindade pagã. A filosofia grega, espécie de arte de bem pensar, nasceu com Sócrates que afirmava, segundo Platão, que sua sabedoria tinha sido revelada por uma sacerdotisa apolínia. E o que dizer das musas inspiradoras de todos os artistas. De alguma forma era uma espécie de consenso entre os artistas de que havia de fato uma inspiração divina, do alto, daí a “tradução” contemporânea, “antena da raça”, na frase de Pound fazer todo sentido. Nota-se em tudo isso a relação estreita, em suas origens sobretudo, entre inspiração divina e arte.
O primeiro estudo sistemático que temos sobre a arte está na Poética de Aristóteles. Nesta obra se encontra a noção de que a arte é mimese, ou seja, uma espécie de imitação. Não apenas a imitação de uma cor, de uma textura, de uma forma, de um gesto, de uma postura, de um comportamento. A mimese seria também uma imitação mais ampla, uma imitação da própria vida humana em sua complexidade de atos e fatos que se desenrolam no tempo com consequências, sentidos e significados.
A arte, portanto, tem a ver com criação de uma obra humana que se propõe mimetizar a realidade de alguma forma. No entanto, parece que não se trata apenas de mimese. A mimese pode explicar a arte figurativa, por exemplo, mas parece que não explica a arte abstrata. De outro modo parece mesmo que tudo pode ser resumido em mimese e composição. Mimese porque toda criação humana é uma espécie de repetição, cópia, mimetização do que já existe. Porém, em muitos casos, se utilizando de uma composição inventiva, como quem mistura cores que existem para chegar a um novo tom, ou quando se inventam novas formas arquitetônicas com base nas formas e nos materiais que já existem. Talvez por isso alguns autores trabalhem com a noção de subcriação dando a entender que a arte seria uma espécie de criação da criatura: subcriação. Ora, de fato nada surge do nada no mundo humano, tudo é “criado” (composto) do que já existe.
É importante frisar que a arte requer também certas habilidades do artista: talento, vocação, preparação etc. Bem, é verdade que para fazer um par artesanal de sapatos também é preciso todas os atributos descritos acima. Mesmo tendo o artefato do sapateiro, o sapato, uma utilidade óbvia, mesmo assim a arte de fazer sapatos é uma espécie de arte.
O que difere a arte de fazer sapatos, por exemplo, da arte de fazer literatura? A arte de fazer calçados inclui tempo aprendizado e de prática e com a constância e dedicação ao aprendizado e a prática é possível chegar à excelência na arte de fazer sapatos. Nesse sentido, a arte da literatura não é muito diferente. Inclui o aprendizado da leitura e da escrita. Passados os rudimentos da leitura e escrita, passasse a ler mais e a escrever mais, com o estudo sobre como escrever, com a prática e dedicação ao ofício pode-se chagar a excelência na arte de escrever.
Repare que cada sapato produzido serve a uma pessoa ou duas ou três no máximo. Um texto escrito e publicado pode ser lido por dezenas, centenas, milhares de pessoas ou quiçá milhões de pessoas no transcorrer do tempo. O artefato da arte literária pode perdurar por décadas, séculos e milênios. Acrescente-se a isso a função comunicativa e chegaremos mais perto das possibilidades humanas da arte literária.
Para efeitos deste ensaio podemos definir provisoriamente a arte literária como artefato escrito em prosa ou poesia que narra histórias verídicas ou fictícias.
LITERATURA E COMUNICAÇÃO
A função essencial da literatura é comunicar uma realidade humana. A função comunicativa da arte é, como já foi dito, essencial para obra de arte literária, posto que se não há o que comunicar não há por que dizer ou descrever algo.
Grande parte da importância da literatura advém do fato desta fornecer um manancial de histórias, um repertório, em poesia ou prosa, das experiencias humanas e de seus contextos que, quando elaborados, podem ajudar a entender os acontecimentos passados e presentes. Assim como conceber, com algum grau de certeza, possíveis futuros. Um manancial de experiências e projeções de onde podemos colher exemplos do que fazer ou do que não fazer, exemplos de ser ou não ser. Ou seja, além do fruir estético, do prazer na contemplação da obra de arte, esta possui uma clara utilidade prática para a vida humana.
Não haveria razão em produzir uma obra de arte se esta não tivesse algo a dizer sobre a vida e a conduta humana. E comunicar é inescapavelmente comunicar a partir um certo ponto de vista necessariamente valorativo, ou seja, moral e ético. Não se trata de realizar uma obra com um determinado viés nesta ou naquela direção, mas de retratar a realidade, veridicamente ou de maneira fictícia, com tal sinceridade e seriedade que obra possa servir de inspiração para a vida de outros seres humanos, de modo em geral, e de inspiração para suas condutas.
Todo ser humano tem concepções morais e éticas que lhe servem de referência para que possa jugar aspectos da realidade, da própria conduta e das condutas de outros seres humanos principalmente quando estas dizem respeito ao âmbito social ou político. Não há ser humano que não tenha concepções morais e que, de alguma forma, guie sua existência de acordo com determinados valores latentes ou manifestos. As fontes destes valores e condutas estão no imenso oceano de experiências e elaborações que denominamos cultura humana. E narrar histórias é de fato uma das mais importantes formas de comunicar a cultura humana que vem sendo construída durante séculos e milênios.
No entanto, é importante frisar que são necessários alguns critérios para que a obra de arte tenha efetividade. Nesse sentido, podemos dizer que quando a obra é feita com engenho e arte propriamente, ou seja, com técnica apurada e beleza, tonar-se apreciável e memorável e assim cada vez mais útil para seus propósitos éticos e morais.
Não se trata de dizer direta ou indiretamente como as pessoas devem agir ou deixar de agir, mas de dar oportunidade, por meios de narrações verídicas ou ficcionais, para que as pessoas possam conceber cosmovisões mais amplas onde possam realizar escolhas de modo mais inteligente, podendo, dentro de certos limites, guiar a si mesmos e a outros.
Os poemas Homéricos, por exemplo, representam uma das grandes realizações artísticas do chamado Ocidente. Otto Maria Carpeux no primeiro volume da sua monumental História da Literatura Ocidental, comenta:
“Os gregos de todos os tempos encontraram em Homero respostas quanto a conduta da vida; o conteúdo e até a arte perderam a importância principal considerando-se a força superior da tradição ética.”
Há quem se pergunte por que a Ilíada ou a Odisseia são ainda hoje lidos. Se considerarmos que esses poemas transmitem valores, de certo modo, universais que ampliam os horizontes dos seres humanos e acrescentam a alma humana sentido, beleza e propósito, vemos que não é difícil perceber sua importância.
Podemos tirar diversas lições dos poemas de Homero e de outras obras gregas, como, por exemplo, a peça Medeia de Eurípedes, que comentaremos a seguir. Enfatizaremos algumas questões relativas ao matrimônio, ao adultério e suas consequências, posto que os poemas de Homero e a peça de Eurípedes tratam desses assuntos exemplarmente.
(CONTINUA)